sábado, 16 de fevereiro de 2008

Regime Falimentar das Empresas Estatais

1. INTRODUÇÃO
Benilson Coelho Alencar- Estudante de Direito da UNEB

A matéria que será tratada, referente à falência de sociedades de economia mista e empresas públicas, sempre foi alvo de inúmeras discussões doutrinárias e instabilidade legislativa. Estariam ou não, essas entidades, submetidas ao regime falimentar? Somente se exploradoras de serviço público estariam isentas, submetendo-se àquele regime, somente as exploradoras de atividade econômica? Esses questionamentos são objetos do presente trabalho, que visa dirimir essas controvérsias, apontando a posição que atenda aos parâmetros da razoabilidade e do interesse público, fim supremo a ser alcançado.

2. EMPRESAS ESTATAIS

No dizer de Celso Antonio Bandeira de Melo, tais entidades não passam de sujeitos auxiliares do Estado, existindo para que este, por seu intermédio, “conduza de modo satisfatório assuntos que dizem respeito a toda à coletividade”. Assim, tanto as sociedades de economia mista (pessoa jurídica de direito privado, criada para prestação de serviço público ou exploração de atividade econômica, com capital misto e na forma de S/A) como as empresas públicas (pessoa jurídica de direito privado composta por capital exclusivamente público, criada para a prestação de serviços públicos ou exploração de atividades econômicas sob qualquer modalidade empresarial), seriam meros instrumentos da ação do Estado, comportado uma diversidade de regimes, conforme sejam prestadoras de serviço público ou exploradoras de atividade econômica. Ainda segundo o autor, as primeiras “desenvolvem atividade em tudo e por tudo equivalente aos misteres típicos do Estado e dos quais este é o senhor exclusivo”. Já as segundas “protagonizam seu empenho em um campo que é, por definição, o terreno próprio dos particulares, das empresas privadas, e ao qual o Estado só por exceção pode acorrer na qualidade de personagem empreendedor; ainda assim, este papel lhe é facultado apenas quando houver sido acicatado por motivos de alta relevância. Em tal hipótese, contudo, justamente para que não se instaure uma ‘concorrência desleal’ com os particulares, a entidade governamental terá de comparecer despojada dos atributos que acompanham os entes governamentais”.

3. FALÊNCIA DAS EMPRESAS PÚBLICAS E SOSIEDADES DE ECONOMIA MISTA

A redação original da lei das sociedades por ações (Lei 6.404/76, art. 242) excluía as sociedades de economia mista da aplicação das disposições da lei falimentar, com a seguinte justificativa, presente na Exposição de Motivos: “A razão do preceito -- similar ao de outras legislações estrangeiras -- é óbvia: o interesse público, que justifica a instituição, por lei, de uma companhia de economia mista, não permite admitir que sua administração possa ser transferida para credores, através do síndico, como ocorre na falência”. Acontece que a noção de interesse público é fluida e está sujeita a variações, de modo que aquilo que se apresenta como de relevante interesse público hoje não necessariamente manterá essa relevância no futuro. A referida lei, no entanto, sempre foi omissa quanto ao regime das empresas públicas. Isso levou a posições diferentes dos especialistas quanto à questão da falência desses entes. Assim, alguns, como Celso Antonio Bandeira de Melo, admitiam a decretação da falência, salvo nos casos das prestadoras de serviços públicos, posição que parecia mais razoável. Nesse sentido: “Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista - Regime Próprio das Empresas privadas. As empresas públicas e outras entidades que explorem atividade econômica em sentido estrito, sem monopólio, estão sujeitas ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias — CF, art. 173, § 1º” (STF - ADIM nº 1.552-4 – Pleno – Rel. Min. CARLOS VELOSO – publ. DJ 17/04/1998). Para outros, no entanto, sempre seria admissível o regime falimentar (esse era o entendimento de Diógenes Gasparine).
A lei nº 10.303, de 31.10.2001 revogou o artigo 242 da Lei 6.404/76. Mesmo antes dessa revogação já havia controvérsias quanto ao tema. Alguns doutrinadores admitiam a decretação de falência no caso dessas entidades, alegando que a norma, que não sujeitava as sociedades de economia mista ao regime de falência, não estava de acordo com o art. 173, § 1º, da CF de 1988, segundo o qual tais entidades, quando exploram atividade econômica, equiparam-se às empresas privadas no que concerne aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários. O legislador acabou cedendo a tal entendimento, uma vez que a lei nº 10.303/01 passou a admitir a decretação de falência em relação às sociedades de economia mista. Porém, como sabiamente observou o professor José dos Santos Carvalho Filho, dever-se-ia ter excluído desse dispositivo as sociedades de economia mista prestadoras de serviço público, já que não se inseririam no referido art. 173, § 1º, da CF de 1988 e também porque deveria prevalecer o princípio da continuidade dos serviços públicos.
Essa nova orientação legislativa, entretanto, ficou abalada com o advento da Lei nº 11.101, de 09/02/2005, que passou a regular a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência de empresário e da sociedade empresária, revogando o Decreto-lei nº 7.661/45 e dispondo em seu art. 2º, inciso I, a sua inaplicabilidade às empresas públicas e às sociedades de economia mista, sejam prestadoras de serviços públicos ou voltadas a atividades econômicas empresariais. Assim, pelo menos para o direito positivo, a situação ficou definida, continuando, porém, as discussões doutrinárias.
Para alguns, como Júlio Kahan Mandel e Fabio Ulhoa Coelho, numa interpretação apenas gramatical da lei, não o fazendo sistematicamente, com inobservância dos preceitos constitucionais, as Empresas Estatais estão protegidas contra a falência, por terem sido beneficiadas devido à questão política e também pela sua singularidade, tendo de obedecer a Políticas Governamentais Específicas até mesmo quando geram prejuízos, chegando a entender o segundo autor, que as Empresas Públicas não estão sujeitas “em nenhuma hipótese à falência”, ou seja, independentemente da atividade exercida por elas. É interessante observar que, como já disse Duclerc Veçosa, muitas empresas estatais não mais preenchem os pressupostos constitucionais de Segurança Nacional ou a Relevante Interesse Coletivo (CF, art. 173, caput), devendo ser privatizadas, e cita como exemplo, alguns Bancos Públicos Federais com função meramente comercial, cuja atividade pode ser desenvolvida pela iniciativa privada.
O entendimento que parece mais aceitável é o do eminente e sempre atilado professor Jose dos Santos Carvalho Filho, ao entender pela infelicidade do legislador ao ir de encontro com o art.173, § 1º, da Constituição. Para esse autor, é incongruente admitir a falência para as empresas privadas e não a admitir para as sociedades de economia mista e empresas públicas, vez que seria uma discriminação não admitida pelo dispositivo constitucional, ficando as entidades paraestatais com evidente vantagem em relação às demais sociedades empresárias, apesar de ser idêntico o objeto de sua atividade (saliente-se que esse entendimento refere-se as que exploram atividade econômica, já que a exclusão das prestadoras de serviço público do regime falimentar, como outrora citado, é justificável).
Para corroborar tal posicionamento, pode-se dizer que a norma constitucional “visa a assegurar a livre concorrência, de modo que as entidades públicas que exerçam ou venham a exercer atividade econômica não se beneficiem de tratamento privilegiado em relação a entidades privadas que se dediquem à atividade econômica na mesma área ou em área semelhante” (cf. Pleno do STF, RE 172.816, RTJ 153/337 e RDA 195/197).
Por mais de uma vez, o atual Ministro do STF Eros Grau expôs sua posição pela aplicação da lei falimentar às empresas públicas e sociedades de economia mista apenas que exercem atividade econômica e não quando prestam serviço público (cf. “Execução contra estatais prestadoras de serviço público”, RDP 79/103; “Lucratividade e função social nas empresas sob controle do Estado”, RDM 55/54-55). Entende no mesmo sentido Celso Antônio Bandeira de Mello e Diógenes Gasparini.
O § 4º, do art. 173 da CF, funda que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados e à eliminação da concorrência. Fazendo jus a tal dispositivo, a Lei 8.884, de 11/06/1994, que dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico, estabelece em seu art. 20, inciso I, que constitui infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir efeitos como limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa. Todavia, esses dois princípios constitucionais foram estorvados diante do dispositivo que impede a falência das empresas estatais (art. 2º, inc. I, da Lei nº 11.101, de 09/02/2005).
A impossibilidade de falência das empresas estatais exploradoras de atividade econômica fere um dos fundamentos consagrados na Constituição Federal de 1988, qual seja o dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV, CF), além do principio da livre concorrência consagrado no art. 170, inciso IV, permitindo-se uma “concorrência desleal”.

3. CONCLUSÃO

A Lei de Falências (Lei 11.101, de 09.02.2005), em seu art. 2º, ao declarar a sua inaplicabilidade a empresas públicas e sociedades de economia mista, incide em gritante inconstitucionalidade, ferindo o principio da isonomia, além dos já citados, visto que a nossa Carta Magna de 1988, em seu art. 173, § 1º, II, equiparou tais entidades às empresas privadas. Cumpre dizer que o dispositivo constitucional concerne única e exclusivamente às empresas públicas e sociedades de economia mista exploradoras de atividade econômica e não as prestadoras de serviço público, podendo a exclusão feita pela Lei de Falências incidir sobre estas últimas sem nenhuma inconstitucionalidade, pois, neste caso, estariam atendidos os princípios da supremacia do interesse e continuidade dos serviços públicos.
O escopo constitucional é exatamente impedir que as empresas estatais pudessem dispor de situação privilegiada quando concebidas para operar no setor econômico, que é esfera reservada aos particulares e na qual a intervenção estatal é excepcional e só possível em hipóteses muito estritas.


REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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