terça-feira, 11 de dezembro de 2007

"O silêncio Administrativo"

Antônio Francisco Neto
Estudante de Direito da UNEB

1 INTRODUÇÃO


Propusemo-nos neste estudo, a analisar a questão do silêncio administrativo, hoje tão comum ao administrado que, ao exercitar o seu direito de petição previsto na Constituição, vê-se diante da situação de inércia da Administração Pública que, contrária ao seu dever comissivo, mantém-se omissa frente à demanda que lhe foi dirigida.

O nosso foco aqui é saber o que é silêncio administrativo; se podemos classificá-lo como um ato ou um fato administrativo; se podemos considerá-lo como ato administrativo tácito; quais conseqüências jurídicas dele poderiam decorrer; e se é um comportamento lícito.

Não estaremos analisando toda e qualquer omissão administrativa. Mas aquela quando a Administração deixa de se manifestar sobre uma postulação produzida por um particular.

Para que possamos ter uma melhor compreensão, faz-se necessário o exame de outros elementos que informam o exercício da função administrativa: o dever de decidir; o dever de motivar essas mesmas decisões; a diferenciação entre ato e fato administrativo; até passarmos, então, a analisar o fenômeno do silêncio propriamente dito.

Finalmente, de forma simplificada, nos posicionaremos sobre esse tema que, ao nosso ver, é o principal sintoma da negligência administrativa no cumprimento de um dos principais deveres legais da Administração Pública.

2 PODER-DEVER DE AGIR

No âmbito do direito privado, quando um poder jurídico é conferido a alguém, este tem a faculdade de exercitá-lo, configurando-se numa regra geral. Fundamenta-se na circunstância de que, o exercício ou não do poder, acarreta reflexos jurídicos ao próprio titular.

Já na esfera do direito público, ao agente investido no cargo, emprego ou função pública, são outorgados poderes administrativos para lhes permitir atuação voltada aos interesses da coletividade, deles emanando, conforme destaca José dos Santos Carvalho Filho120, “duas ordens de conseqüência: (Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris, 2007, pág. 38.)

1) São eles irrenunciáveis; e
2) Devem ser obrigatoriamente exercidos pelos titulares.

Desse modo, as prerrogativas públicas, ao mesmo tempo em que constituem poderes para o administrador público, impõe-lhe o seu exercício e lhe vedam a inércia, porque o reflexo desta atinge, em última instância, a coletividade, esta a real destinatária de tais poderes”

Portanto, a esse dúplice aspecto do poder administrativo, reconhecido pacificamente pela jurisprudência e pela doutrina, é que se denomina de poder-dever de agir. E aqui a clássica conclusão de Hely Lopes Meirelles: “Se para o particular o poder de agir é uma faculdade, para o administrador público é uma obrigação de atuar, desde que se apresente o ensejo de exercitá-lo em benefício da comunidade” 120. (Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Editora Malheiros, 2007, pág. 105.)

Daí porque a inércia da autoridade ou o silêncio da Administração, na medida em que lhe incumbe a lei conduta comissiva, configura-se como ilegal. Reveste-se, pois, em situação de ilegitimidade, gera responsabilidade para o agente omisso e autoriza a obtenção do ato omitido, quer na via administrativa (direito de petição) ou judicial, notadamente por mandado de segurança, se lesivo de direito líquido e certo do interessado.

Salientamos que nem toda omissão administrativa é qualificada como ilegal. Temos o caso das omissões genéricas, às quais ao administrador cabe avaliar a oportunidade para a adoção das providências positivas, incidindo, aqui, o que a moderna doutrina denomina de reserva do possível.

Ilegais, assim, serão as omissões específicas. Aquelas que ocorrem mesmo que a lei expressamente imponha o fazer administrativo em prazo determinado, ou ainda, mesmo sem prazo previsto, permanece a Administração omissa por período superior ao aceitável dentro dos padrões normais de tolerância e razoabilidade, e que é o foco do nosso estudo.

3 O PRINCÍPIO DA MOTIVAÇÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS

Diante da importância do princípio da motivação na análise do silêncio administrativo, passaremos a um breve estudo deste princípio, o que vem a mais reforçar a idéia da impossibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a essa omissão administrativa.

Pelo princípio da motivação, entende-se o dever da Administração Pública de justificar seus atos, ou seja, explicar, explicitar ou expor as razões que levaram à prática do ato, apresentando os fundamentos, de fato e de direito, que embasaram o ato administrativo.

A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer os princípios vetores da função administrativa, em seu art. 37, não faz, expressamente, qualquer referência ao princípio da motivação. Mas o faz no seu próprio art. 93, X, “as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros;”.

Dentro da atual ordem constitucional, os juristas ainda têm buscado, numa interpretação sistemática do texto constitucional, a motivação como princípio constitucional implícito. Nesse sentido, faz-se a exigência da motivação dos atos administrativos por fundamentar-se tanto no Estado Democrático de Direito, como nos ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro119:

É inerente ao conceito de Estado Democrático de Direito a idéia de participação do cidadão na gestão e no controle da Administração Pública, no processo político, econômico, social e cultural; esta idéia está incorporada na Constituição não só pela introdução da fórmula do Estado Democrático de Direito – permitindo falar em democracia participativa – como também pela previsão de vários instrumentos de participação, podendo-se mencionar, exemplificativamente, o direito à informação (art. 5º, XXX),(...); (Direito Administrativo. São Paulo: Editora Atlas, 2006, pág. 50).;

Nesse aspecto, podemos fazer a conclusão de que o princípio da motivação é conseqüência dele, pois, se o povo é o detentor do poder, nada mais óbvio do que exigir dos seus representantes os motivos das decisões tomadas.

E, ainda, no princípio da razoabilidade, citando a mesma doutrinadora120:

Segundo Gordillo (1977:183-184), “a decisão discricionária do funcionário será ilegítima, apesar de não transgredir nenhuma norma concreta e expressa, se é ‘irrazoável’, o que pode ocorrer, principalmente, quando:

a) não dê fundamentos de fato ou de direito que a sustentam ou;
b) (...) (Direito Administrativo. São Paulo: Editora Atlas, 2006, pág. 50).;

bem como no princípio da legalidade, sustentada por Celso Antonio Bandeira de Melo120, que:

Deve-se considerar, também, como postulado pelo princípio da legalidade o princípio da motivação, isto é, o que impõe à Administração Pública o dever de expor as razões de direito e de fato pelas quais tomou providência adotada. Cumpre-lhe fundamentar o ato que haja praticado, justificando as razões que lhe serviram de apoio para expedi-lo.
Donde a ausência de motivação faz o ato inválido, sempre que sua enunciação prévia ou contemporânea à emissão do ato, seja requisito de indispensável para proceder-se a tal averiguação; (Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 1995, pág. 28.)

Ainda, Hely Lopes Meirelles120, citando os ensinamentos de Rafael Bielsa:

Nesse sentido é a lição dos modernos publicistas, a começar por Bielsa, neste passo: “Por princípio, as decisões administrativas devem ser motivadas formalmente, vale dizer que a parte dispositiva deve vir precedida de uma explicação ou exposição dos fundamentos de fato (motivos-pressupostos) e de direito (motivos-determinantes da lei)”. E, rematando, o mesmo jurista reafirma: “No Direito Administrativo a motivação – como dissemos – deverá constituir norma, não só por razões de boa administração, como porque toda autoridade ou Poder em um sistema de governo representativo deve explicar legalmente, ou juridicamente, suas decisões”. (Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Editora Malheiros, 2007, pág. 100.)

Mas, contrariamente aos posicionamentos acima, apesar de reconhecer a necessidade do administrador expressar-se, José dos Santos Carvalho Filho, assinala:

Sem dúvida nenhuma, é preciso reconhecer que o administrador, sempre que possa, deve mesmo expressar as situações de fato que impeliram a emissão da vontade, e a razão não é difícil de conceber: quanto mais transparente o ato da Administração, maiores as possibilidades de seu controle pelos administrados. Não obstante, se essa conduta é aconselhável, e se os administradores devem segui-la, não se pode ir ao extremo de tê-la por obrigatória120. (Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris, 2007, pág. 107.)

Com a Constituição de 1988 consagrando o princípio da moralidade, que é o composto de regras de boa administração no exercício da função administrativa, ampliando o acesso ao Judiciário e exigindo, deste, decisões motivadas, conforme art. acima mencionado, a regra geral é a obrigatoriedade da motivação, ficando demonstrada a atuação ética do administrador, através da exposição dos motivos do ato, e garantir o próprio acesso ao Judiciário.

Além disso, a Lei 9.784/99, no seu artigo 50 e incisos, de forma detalhada, reforça essa exigência estabelecendo que os “os atos administrativos deverão ser motivados, com a indicação dos fatos e fundamentos”.

Portanto, entendemos que com a exposição em diversos princípios e dispositivos insertos na Constituição, especificamente nos artigos 1º “caput”, inciso II e parágrafo único, 5º XXXV e LIV, e 93 X, bem como a edição da Lei 9.784/99, acabando esta por positivar o entendimento doutrinário sobre a questão, não se faz mais sentido negar a necessidade da motivação nos atos administrativos.


4 O silêncio administrativo

Para que possamos melhor compreender o que aqui se pretende, inicialmente conceituaremos, sem separar e classificar os seus aspectos jurídicos, o que seja ato administrativo, na concepção doutrinária de José dos Santos Carvalho Filho, ou seja: “a exteriorização da vontade de agentes da Administração Pública ou de seus delegatários, nessa condição, que, sob o regime de direito público, vise à produção de efeitos jurídicos, com o fim de atender ao interesse público”.

Segundo Celso Antonio Bandeira de Melo, é “declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público) no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional”.

Conceituado o ato administrativo, fica evidente a impossibilidade de classificarmos o silêncio administrativo como tal, visto não corresponder a uma declaração de vontade. Configura-se mais numa falta de manifestação de vontade a que estava obrigada a Administração perante uma certa provocação.

Observe-se o que anota Hely Lopes Meirelles: “O silêncio não é ato administrativo; é conduta omissiva da administração...” (Direito Administrativo Brasileiro, pág. 114 – 2007).

Celso Antonio Bandeira de Mello, na mesma linha, entende que “Na verdade, o silêncio não é ato jurídico. Por isto, evidentemente, não pode ser ato administrativo. Este é uma declaração jurídica.” (Curso de Direito Administrativo. Pág. 217, 1995).

Se o silêncio administrativo poderia ser considerado uma manifestação tácita da vontade administrativa, não podemos assim imaginar, pois não se caracteriza como um ato típico da função administrativa, inclusive pelo modelo constitucional adotado e pela positivação da obrigação da administração em decidir as postulações dos administrados, conforme o art. 48 da Lei 9.784/99.

Não podemos considerar o silêncio administrativo como ato administrativo por faltar-lhe a motivação, requisito essencial. E sim, como mero fato administrativo, produzindo conseqüências jurídicas na esfera do direito administrativo, como os efeitos negativos e positivos.

Na primeira hipótese, a possibilidade do administrado recorrer à esfera judicial para ver seu pleito atendido. Na segunda, justifica-se a imputação para salvaguardar o interesse do particular que não poderia ser prejudicado pela ineficiência da Administração Pública, desde que não atinja interesses de terceiros.

5 Considerações finais

O trabalho aqui desenvolvido teve como principal objetivo destacar a impossibilidade de ser atribuído ao silêncio administrativo, de forma geral, efeitos jurídicos a um comportamento que descumpre as obrigações legais, ressalvados os casos envolvendo o interesse individual e desde que não afete a coletividade nem outro interesse individual, ficando evidente que se trata mesmo da ineficiência da máquina administrativa pública.

Assim, de forma resumida, chegamos a conclusão sobre os seguintes aspectos:

a) o silêncio administrativo não é um ato administrativo. Tem natureza jurídica de fato administrativo;
b) que, na condição de fato administrativo, ao silêncio administrativo são atribuídos efeitos jurídicos denegatórios e concessórios;
c) o princípio da motivação dos atos administrativos é fator de limitação da lei atribuir indiscriminadamente efeitos jurídicos ao silêncio administrativo, mesmo que seja para reparar ou minimizar as conseqüências da ineficiência da Administração.
d) exercendo a administração poderes que lhe são conferidos para concretizar os interesses públicos, tem por obrigação de decidir motivadamente as demandas dos particulares;



sábado, 1 de dezembro de 2007

Da existência dos decretos autônomos no direito brasileiro

Ziel Ferreira Lopes
Bacharelando em Direito- UNEB

1. Introdução

Desde a promulgação da Constituição de 1988, pacificou-se como entendimento quase unânime[1] na doutrina nacional a inexistência de decretos autônomos no ordenamento jurídico brasileiro. Interessante debate, contudo, sobreveio com o advento da Emenda Complementar nº. 32, a qual, além de outras mudanças, alterou a redação do inciso VI do art. 84, que dispunha sobre singular hipótese de exercício do dever-poder normativo[2]. Nisto, para alguns doutrinadores, teria reintroduzido referida modalidade de decreto no direito pátrio. É a questão que nos propomos a enfrentar – sob um prisma eminentemente teórico –, qual seja: a existência dos decretos autônomos no direito brasileiro na atualidade.

2. Conceito de decreto

Na específica conjuntura do Direito Constitucional brasileiro, que é a que nos interessa, pode-se dizer em linhas gerais que o decreto é ato normativo emitido pelo Chefe do Executivo, no exercício do dever-poder normativo, destinado a: I) proporcionar fiel execução às leis (art. 84, IV); II) dispor sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos (art. 84, VI, “a”); III) extinguir funções ou cargos públicos, quando vagos (art. 84, VI, “b”).
Cumpre fazer distinção entre decreto e regulamento, o que nos será útil mais a diante. No dizer de Pinto Ferreira:

“Decreto é o nome genérico para designar atos do presidente da República. Quanto ao regulamento, Duguit ministra a seguinte definição (Manuel de droit constitutionnel, cit., p. 104 e 105): ‘Concorda-se em definir o regulamento como toda disposição geral emanada de outro órgão que não seja o Parlamento ou, se se quer, toda disposição geral editada de outra forma que a forma legislativa (quer dizer, voto pelo Parlamento e promulgação pelo presidente da República)’.”[3]

Não obstante, regulamentos podem ser editados por via de decreto. Constituem os chamados decretos regulamentares. Isto posto, aduz Pinto Ferreira, logo em seguida, que os decretos podem ser classificados em duas categorias:

“I – decretos gerais ou regulamentares, estabelecendo normas para a aplicação da lei, também designados com a nomenclatura de regulamentos administrativos, completando as leis emanadas do Congresso;
“II – decretos especiais, ou individuais, que segundo Capitant, são alusivos a situações jurídicas particulares, individuais, concretas, como os decretos de nomeação de funcionários, de transferência, de demissão, etc.” (Grifo nosso) [4]

3. Decreto autônomo

Afora a classificação acima trabalhada, interessa-nos em especial uma outra, que divide os decretos em executivos e autônomos. Decretos executivos estabelecem “normas para a aplicação da lei”, ou, no dizer da Constituição, “para sua fiel execução”. Destarte, já que visam sua “fiel execução” estão a ela subordinados, não podendo dela prescindir ou ela contrariar, atuando tão-somente secundo legem. Já os decretos autônomos, como o próprio nome indica, atuam com autonomia em relação à lei. Se for facultado a um decreto contrariar a lei, completá-la – em grau de igualdade, como se lei fosse –, ou dela prescindir, este se constitui em decreto autônomo. [5]

4. Delimitação do problema dos decretos autônomos no ordenamento jurídico brasileiro

Boa parte dos autores consultados se dedica a tratar da existência dos decretos autônomos fora das três hipóteses constitucionais (art. 84, IV; art. 84 VI, “a” e art. 84 VI, “b”) ensejadoras de decreto, convertendo-as em meras ressalvas. Nisto, chegam quase sempre ao mesmo resultado: a sua inexistência fora de tais casos. Ora, a inexistência de decretos autônomos fora das três hipóteses mencionadas é para nós totalmente óbvia. Consideramos absurdo pretender, mesmo hipoteticamente, que a Constituição deixasse implícita tal possibilidade. O ordenamento é taxativo quanto às hipóteses de uso de simples decretos executivos. Tanto mais o seria com relação a um decreto autônomo. Procedamos, então, à análise de todas as hipóteses ensejadoras de decreto nos seus nichos constitucionais. Pedimos vênia para, em tal análise, abster-nos quanto à complexa questão que pode sobrevir se verificada viabilização de decreto autônomo por específico dispositivo constitucional, individualmente considerado, a saber: se este se coadunaria com o todo constitucional, não resvalando em seus demais dispositivos e princípios. Isto porque exíguo é o espaço de que dispomos, e portentosa se afigura a dita questão, demandando tratamento em separado.
A primeira hipótese (art. 84, IV) constitui claramente aquilo a que a doutrina chama de decreto executivo. Destarte, tendo em conta que o que perquirimos aqui é a existência de decretos autônomos no nosso ordenamento, não nos interessam maiores aprofundamentos nesta hipótese. Cumpre averiguar se as duas outras hipóteses restantes (art. 84, VI “a” e “b”) ensejam o que os doutrinadores designam de decreto autônomo.

5. Os decretos previstos no art. 84, VI, da Constituição

Tratemos agora das singulares hipóteses do inciso VI, o qual enuncia: “dispor, mediante decreto, sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;”. Não obstante, a redação original do referido inciso assim dizia: “dispor sobre a organização e o funcionamento da administração federal, na forma da lei;”.
É de crer, que a supressão do termo “na forma da lei” pela nova redação seja um indicativo de liberação de submissão legal dos decretos, nos estritos casos das referidas alíneas. Admitimos que a redação do inciso lhes faculte, implicitamente, autonomia com relação à lei, o que não é dizer que a Constituição – considerada como um todo – assim o faça. O que interessa saber, por ora, ainda que facultada a autonomia de tais decretos com relação à lei – repise-se: facultada por seu próprio inciso, tomado isoladamente –, é se nas referidas alíneas consubstanciam-se casos em que se vá, de fato, prescindir, exorbitar, ou contrariar prescrição legal.
Passemos a analisar o caso alínea por alínea.

I) Alínea “a”

Conforme vimos, na redação passada o inciso viabilizava a disposição mediante decreto sobre a organização e o funcionamento da administração federal, fazendo a ressalva de que tal disposição só poderia se dar na forma da lei. Na redação atual, tal hipótese foi realocada na então criada alínea “a”, com supressão da ressalva “na forma da lei”.
Talvez por conta disso Maria Sylvia Zanella Di Pietro classifique tal hipótese como de regulamento autônomo. Diz ela: “Com a alteração do dispositivo constitucional, fica restabelecido o regulamento autônomo no direito brasileiro, para a hipótese específica inserida na alínea a.”[6] Consideramos tal posição duplamente errada, conforme ficará claro a seguir. Observa-se que além da supressão de referida ressalva, aditou-se que tal disposição não poderia implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Ora, observa-se que tal ressalva esgota todas as hipóteses em que o decreto poderia vir a contrariar lei, ou a ela pretender igualar-se. Tal competência passeia perfeitamente dentro das balizas legais, jamais podendo ensejar autonomia. Eis o primeiro erro de Di Pietro. Assim, leciona o mestre Celso Antônio, que após analisar todas as possibilidades que tal alínea faculta ao Chefe do Executivo, conclui:

“Este é o regulamento previsto no art. 84, VI, “a”. Mera competência para arranjo intestino dos órgãos e competências já criadas por lei. Como é possível imaginar que isto é o equivalente aos regulamentos independentes ou autônomos do Direito Europeu, cuja compostura, sabidamente, é muitíssimo mais ampla? ”[7].

Critica Celso Antônio a identificação de tal hipótese com a acepção européia de decreto autônomo. Contudo, não se posiciona peremptoriamente quanto a seu enquadramento como decreto autônomo, numa acepção brasileira do termo, que seja. Nossa posição é de que não. Para além disso, Celso erra juntamente com Di Pietro, no que enquadra tal hipótese como sendo de regulamento. Claro está que a disposição sobre a organização e o funcionamento da administração federal constitui-se em hipótese de decreto especial, ou individual, e não de decreto regulamentar. [8] De fato, é mais uma hipótese de exercício de Dever-Poder Hierárquico que de Dever-Poder Regulamentar, posto que exercido totalmente dentro do âmbito da Administração pública.

II) Alínea “b”

Introduzindo hipótese inexistente na redação passada, vem a alínea “b” a viabilizar extinção mediante decreto de funções ou cargos públicos, quando vagos. Afora a prescindência da ressalva “na forma da lei”, a própria natureza do caso consubstanciado em referida alínea leva inelutavelmente a um choque entre tal decreto e a lei. Posto que funções e cargos públicos são criados por lei, o decreto, nesses casos, implica em desfazer obra de lei; necessariamente será contra a lei, atuando com autonomia em relação a ela. É o que coloca o Mestre Celso Antônio:

“Anote-se, por fim, que neste mesmo art. 84, VI, já agora na letra “b”, está contemplado um caso em que é permitido ao Executivo expedir ato concreto de sentido contraposto a uma lei, pois ali se prevê a possibilidade de o Presidente da República extinguir cargos vagos. Como os cargos públicos são criados por lei, sua extinção por decreto, tal como ali prevista, implica desfazer o que por lei fora feito”[9].

Di Pietro também trata do tema, mas perquirindo por regulamentos autônomos. Assim, rechaça uma avaliação da dita alínea “b” logo de início, ao constatar que não se trata de “função regulamentar”[10]. Para nós, entretanto, que indagamos aqui da existência de decretos autônomos no direito pátrio, a análise de tal alínea conduz, enfim, à seguinte conclusão:

INOCORRENDO CONFLITO ENTRE A ALÍNEA “B” DO ART. 84, INCISO VI, E O RESTO DA CONSTITUIÇÃO, ADMITIDA ESTARIA UMA HIPÓTESE DE DECRETO AUTÔNOMO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.

6. Jurisprudência

À mero título de ilustração jurisprudencial, de um trabalho de enfoque anunciadamente doutrinário, podemos dizer que o STF tem admitido ADI’s quanto a certos decretos, o que implicaria dizer que estes têm sua fonte diretamente haurida na Constituição. Muitos são os que enxergam nisso um reconhecimento, por parte do STF, da existência de decreto autônomo no ordenamento jurídico brasileiro. Tal é o julgado:

“Com efeito, o que é preciso demonstrar é que o decreto do Chefe do Executivo decorre de competência direta da Constituição, ou tire seu fundamento da Carta Magna. Nessa hipótese, caso o regulamento não se amolde ao figurino Constitucional, caberá análise de constitucionalidade pelo Supremo. Caso contrário será mero vicio de inconstitucionalidade reflexa, afastando o controle concentrado em ADI (...) [11]”.

Acreditamos, porém, que a raiz da polêmica esteja na confusão sobre o conceito de decreto autônomo. A nosso ver, dizer que um decreto haure sua fonte na Constituição não implica dizer que seja autônomo.
No caso específico da alínea “a”, por exemplo, tanto na redação atual como na original, o decreto do Chefe do Executivo decorria “de competência direta da Constituição”. A única mudança foi a supressão da ressalva “na forma da lei”, a qual julgamos continuar hoje em dia, nos termos “quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos”. Porque, então, se pretende apenas agora que tal alínea tenha se convertido em ensejadora de decretos autônomos? Ora, vimos que os decretos que enseja, quando exercidos nos devidos limites de suas atribuições, apenas têm poder de disposição dentro dos limites de alguma lei já existente, ou sobre algo que já tenha sido criado por lei. Continuamos sustentando, assim, que não constituem decretos autônomos. Poder-se-ia admitir que os decretos que o inciso VI enseje se tornem atacáveis por ADI apenas por terem sua competência explicitamente delimitada na Constituição, o que não significa que tenham poder de locupletar, contrariar ou prescindir de lei.
O teor do julgado supracitado, conquanto não corrobore expressamente esta tese, por outro lado, com ela não se choca de modo algum. A maior parte dos julgados encontrados, contudo, vai expressamente em sentido oposto ao nosso. P. ex.:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Aumento de vencimentos por decreto que aprova tabelas em conformidade com índices firmados em acordo coletivo. Decreto 3.140, de 14.03.91, do Estado de Mato Grosso, É de conhecer-se da ação direta, porquanto, no caso, o ato normativo impugnado é um decreto autônomo, sendo que, inclusive, um dos fundamentos da ação é justamente o de ter ele invadido a esfera reservada a lei pela Constituição Federal. (grifo nosso)”[12].

Quanto à alínea b, nenhum julgado foi encontrado. Acredita-se que tal se dê pelo fato de constituir-se em hipótese estritamente limitada de exercício do dever-poder normativo, não se vislumbrando como poderia desbordar da competência que lhe foi constitucionalmente atribuída. Daí resulta não se ver decretos nela fundamentados sendo atacados por ADI.

7. Conclusão

Ao fim e ao cabo, acreditamos ter delimitado o problema dos decretos autônomos no ordenamento jurídico brasileiro de uma maneira ainda não considerada, restringindo em muito o debate sobre a questão, apontando a alínea “b” do art. 84, inciso VI, como único possível reduto de decreto autônomo no ordenamento pátrio. Resta saber se este dispositivo se coaduna com o todo constitucional.
Já abdicamos de aprofundamento nesta questão, deixando tal tarefa para futuros interessados a dar-lhe desenvolvimento, para o que julgamos humildemente que as conclusões aqui obtidas poderiam constituir ponto de partida.

8. Notas
[1] Dentre os autores consagrados pode-se citar apenas Hely Lopes Meirelles. Cf. o seu Direito administrativo brasileiro. p.124.
[2] Expressão que julgamos a mais adequada, na qual procuramos atender aos ensinamentos do mestre Celso Antônio Bandeira de Mello (Cf. Curso de Direito Administrativo, p.337) sobre a importância de se fixar que, neste caso, o dever precede o poder, sendo mesmo seu fundamento e justificativa; cumulando tal advertência com a que faz Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo, p. 86), acerca da inadequação da expressão “poder regulamentar”, comumente usada, que “não esgota toda a competência normativa da Administração Pública”, preferindo a expressão “poder normativo”.
[3] Pinto Ferreira, Curso de Direito Constitucional, p. 384 .
[4] Idem.
[5] Identifica-se perfeitamente o conceito de decreto executivo com o de decreto regulamentar. São a mesma coisa. Impende a ressalva de que, apesar de o conceito de decreto executivo se identificar com o de decreto regulamentar, é incorreto supor que o de decreto autônomo se identifique ao de decreto individual. As classificações são independentes uma da outra.
[6] Direito Administrativo, p. 89.
[7] Curso de Direito Administrativo, p.326-327.
[8] Se os decretos previstos no art. 84, VI, “a” não são decretos autônomos, são decretos executivos? Temos motivos para acreditar que não, o que demandaria para estes uma classificação própria. Cuida-se de interessante tema, que gostaríamos de desenvolver. Contudo, o exíguo espaço de que dispomos neste artigo não permite que nele nos detamos. Importa saber aqui, apenas, que não se trata de modo algum de hipótese de decreto autônomo. Podemos dizer, resumidamente, que não são decretos executivos, posto que constituem hipótese de decreto especial, e não decreto regulamentar. Como vimos (vide nota nº.5) decretos executivos são sempre regulamentares. Ainda: Decretos executivos sempre dizem respeito à relação entre a administração e os administrados, seja uniformizando-lhes o tratamento, seja melhor evidenciando-lhes os direitos (é o que se depreende da leitura do Item 40 do Curso de Direito Administrativo de Celso Antônio Bandeira de Mello, p.350). Já os decretos previstos no art. 84, VI, “a”, em nada dizem respeito às relações entre administração pública e administrados.
[9] Curso de Direito Administrativo, p.327
[10] “Quanto à alínea b, não se trata de função regulamentar, mas de típico ato de efeitos concretos, porque a competência do Presidente da República se limitará a extinguir cargos ou funções, quando vagos, e não a estabelecer normas sobre a matéria”. Direito Administrativo, p. 89.
[11] ADI 2387-0 DF – Rel. Min. Marco Aurelio
[12] Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 519-7, relatada pelo Ministro Moreira Alves perante o Plenário, com acórdão veiculado no Diário da Justiça de 11 de outubro de 1991.



9. Referências

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, 1999

FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 21. ed. Malheiros, 2006.

BASTOS, Celso Ribeiro & MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. v. 4, tomo II. São Paulo: Saraiva, 1996.

COSTA, Ricardo Martins. O decreto presidencial à luz da Emenda Constitucional nº 32 . Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 63, mar. 2003. Disponível em: . Acesso em:
document.write(capturado());
17 nov. 2007 .

AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. A reintrodução do decreto autônomo com a EC32/01. Disponível em: http://www.intelligentiajuridica.com.br/v3/artigo_visualizar.php?id=703&pagina=artigo_busca_form.php

MARQUES, Marcelo Henrique Pereira. O decreto autônomo da jurisprudência do STF. Disponível em: http://www.direitonet.com.br/artigos/x/28/37/2837/#perfil_autor