sexta-feira, 30 de novembro de 2007

O Nepotismo e o Princípio da Impessoalidade

Rafael Mendonça dos Santos
Estudante de Direito da UNEB


« Le népotisme, c’est la structure intime de la société secrète. Il est ce qui fait que la Nation a cessé d’être démocratique. Il interdit aux uns de s’élever — ceux qui ne sont pas de la famille —, et il permet aux autres de tenir les leviers de commande... Lévi-Strauss vous dirait que c’est de l’endogamie, la manière dont les tribus indiennes sont presque toutes mortes de consanguinité, les règles de l’échange ne fonctionnent plus... Le népotisme c’est l’ultime régression ».

Periodicamente chegam aos ouvidos dos cidadãos, pelas mais diversas formas de imprensa, casos de nepotismo, uma prática que, incontestavelmente, assola a política autóctone e internacional. Um caso recente de repercussão mundial foi o do Diretor do Banco Mundial, em 18 de maio o Le Fígaro estampava: “Noyé dans une affaire de népotisme, le président de la Banque mondiale quittera l’institution le 30 juin prochain” (afogado em caso de nepotismo, o presidente do Banco Mundial deixará a instituição no próximo 30 de junho).
O termo nepotismo não é novo, sua gênese ocorreu ainda na Idade Média. O termo servia para designar a relação do papa com seus parentes, geralmente filhos ilegítimos que ocupavam altos cargos, nomeados pela benevolência de suas santidades; Júlio II (1503 - 1513) e Leão X (1513 – 1521) são exemplos clássicos dessa prática entre os pontífices. Com o passar dos séculos o sentido do termo nepotismo foi mudando, hodiernamente designa o favorecimento de parentes em prejuízo de pessoas mais qualificadas, na nomeação e nas promoções de cargos. Alguns estudiosos afirmam que o nepotismo tem raízes biológicas, baseado numa solidariedade genética, uma forma de proteger os parentes. Entre as personalidades históricas nepotistas destaca-se Napoleão Bonaparte, que entronizou três dos seus irmãos (Louis, Jerome e Joseph) nos países dominados.
Vários países conseguiram erradicar o nepotismo da Administração Pública, os Estados Unidos, a Espanha, e Portugal são exemplos bem-sucedidos. Entretanto, não só nos países ricos o nepotismo é combatido, mas até mesmo na África e na América Latina, onde esse combate vem estampado em algumas Cartas Magnas e inspira a criação de leis. Na África três países franco-fônicos se destacam, são eles: Ruanda, Chade e Níger. Em Ruanda a Lei 2 de 2003, art.22, prevê punições às praticas nepotistas

Sera puni d’une peine d’emprisonnement de 2 à 5 ans et d’une amende de cinquante mille (50.000) à un million de francs rwandais (1.000.000 frw) tout responsable d’un établissement autonome d’intérêt général, ou son délégué, qui aura pris une décision fondée sur le favoritisme, le népotisme ou sur l'inimitié manifestée à l’égard de certains de ceux qui recourent à ses services. (Será punido a uma pena de aprisionamento de 2 a 5 anos e a multa de cinquenta mil a um milhão de francos ruandeses qualquer responsável por estabelecimento autônomo de interesse geral, ou o seu delegado, que tomar uma decisão fundada sobre o favoritismo , o nepotismo ou ssobre a inimizade manifestada em relação a alguns que recorrem aos seus serviços).
No Chade, o preâmbulo da Constituição de 1993 relembra a história do país.
Les différents régimes qui se sont succédés ont créé et entretenu le régionalisme, le tribalisme, le népotisme, les inégalités sociales, les violations des droits de l'Homme et des libertés fondamentales individuelles et collectives dont les conséquences ont été la guerre, la violence politique, la haine, l'intolérance et la méfiance entre les différentes communautés qui composent la Nation tchadienne. (Os diferentes regimes que sucederam criaram e mantiveram o regionalismo, o tribalismo, o nepotismo, as desigualdades sociais, as violações dos direitos do Homem e as liberdades fundamentais individuais e coletivas das quais as conseqüências foram a guerra, a violência política, o ódio, a intolerância e a desconfiança entre as diferentes comunidades que compõem a Nação chadiana.

Na América Latina, o Peru e a Nicarágua têm leis sobre o nepotismo. No Peru, esse desiderato é abrigado pela lei 26.771, que proíbe a prática já no primeiro artigo

Los funcionarios de dirección y/o personal de confianza de las entidades y reparticiones públicas conformantes del Sector Público Nacional, así como de las empresas del Estado, que gozan de la facultad de nombramiento y contratación de personal, o tengan injerencia directa o indirecta en el proceso de selección se encuentran prohibidos de ejercer dicha facultad en su entidad respecto a sus parientes hasta el cuarto grado de consanguinidad, segundo de afinidad y por razón de matrimonio. (Os funcionários de direção e/ou pessoal de confiança das entidades e repartições públicas conformantes do Setor Público Nacional, assim como das empresas do Estado, que gozam da faculdade de nomeação e contratação de pessoal, ou tenham ingerência direta ou indireta no processo de seleção se encontram proibidos de exercer dita faculdade em sua entidade a respeito de seus parentes até o quarto grau de consangüinidade, segundo de afinidade e por razão de matrimônio).

O Brasil não segue o exemplo desses países, em terras tupiniquins não existe lei que regulamente ou proíba a prática do nepotismo. Quando se fala em criar leis anti-nepotistas todas as intenções e tentativas esbarram em poderosos grupos de interesse que dominam os três poderes da União. Essa inércia do Legislativo vai de encontro aos interesses da sociedade. Diante de tal situação e buscando erradicar o nepotismo do Poder Judiciário, o CNJ editou a Resolução nº 7. Muito se tem discutido sobre a validade de tal regulamento, as opiniões divergem drasticamente. Torna-se um imperativo limitar a ação dos nepotistas, com base no princípio da impessoalidade. Cabe então analisar a Constitucionalidade do princípio retrocitado, e da resolução do CNJ.
O Nepotismo fere, inegavelmente, o princípio da impessoalidade. Abrigado no art. 37 da Constituição Federal, não se restringe a Administração Pública, mas abrange todos os poderes da União. Porém, ainda não é claro o sentido e os limites atribuídos a esse princípio no Direito Brasileiro, especialmente na doutrina, onde tem recebido sentidos e alcances diversos nas obras dos principais autores. Maria Sylvia Zanella de Pietro confirma: “esse princípio (...) está dando margem a diferentes interpretações pelos doutrinadores” (pág. 71, 2001). Celso Antônio Bandeira de Mello liga a impessoalidade com o princípio da igualdade: “não é senão que o próprio princípio da igualdade ou isonomia. Nele, se traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas" (pág. 70, 1999). Hely Lopes trata a impessoalidade como sinônimo da finalidade (pág.89/90, 2002).

"O princípio da impessoalidade, referido na Constituição de 1988 (art. 37, caput), nada mais é que o clássico principio da finalidade, o qual impõe ao administrador público que só pratique o ato para seu fim legal. E o fim legal é unicamente aquele que a norma de Direito indica expressa ou virtualmente como objetivo do ato, de forma impessoal".

Outros autores têm procurado, sem lograr êxito, atribuir um novo sentido ao princípio da impessoalidade, presenteando-lhe com uma maior autonomia. Ana Paula Oliveira Ávila criou uma teoria, baseada nas obras de Carmem Lúcia Antunes Rocha e Lúcia Valle Figueiredo. Ávila relembra um exemplo de Figueiredo, um caso onde as pessoas de determinado grupo são tratadas de forma igualitária, mas, com essa igualdade baseada em critérios de conveniência. Nesse caso, segundo Ávila, não haveria um ferimento ao princípio da igualdade, mas somente à impessoalidade. Todavia, a distinção não satisfaz, porque está ancorada sobre uma redução do princípio da igualdade, que é claramente lesado no caso mencionado.
Sem uma limitação pacificada, a impessoalidade, para Jasson Hibner está assentada em uma série de sobreprincípios, que atribuem o devido contorno àquela. O Estado de Direito, o princípio democrático, o princípio republicano e os direitos fundamentais (em especial a igualdade), são esses sobreprincípios supracitados.
Mas, a sua não-efetivação não está diretamente ligada a essa divergência doutrinária, mas sim a uma questão cultural. No Brasil o nepotismo é vislumbrado como algo normal por boa parte dos cidadãos. Na democracia brasileira a forma de exercer o poder, por certas autoridades, ainda contém traços absolutistas. O princípio da impessoalidade como corolário do Estado Democrático de Direito é olvidado de forma pública e notória.
Mesmo sendo impossível separar a impessoalidade da igualdade, visto que está a primeira está totalmente inserida num círculo maior representado pela última, sua eficácia não pode ser contestada. O princípio da impessoalidade possibilita um atrelamento mais acentuado ao dever de imparcialidade. Mas a eficácia do princípio é questionada para que o nepotismo, ferida incurável da administração pública brasileira e dos demais poderes, se perpetue. O dinheiro público no Brasil sustenta determinados grupos, e institui privilegiados que se destacam na hierarquia social de uma nação que agoniza em desigualdades sociais.
Diante desse problema e da incontestável inércia do Poder Legislativo Nacional, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), criado pela Emenda Constitucional nº 45, resolveu tomar uma atitude. O CNJ é formado por representantes do Poder Judiciário, do Parquet, da classe dos advogados e por dois representantes da sociedade, num total de quinze membros. Em 18 de outubro de 2005, o Conselho editou a resolução nº 7 que veda a prática de nepotismo no Poder Judiciário. A nova norma previu a exoneração, em 90 dias, de ocupantes de cargos em comissão ou de função gratificada atingidas pela norma. O novo regulamento também trouxe as regras a serem aplicadas pelos tribunais e demais órgãos do Judiciário, em todo o território nacional, para conter a prática do emprego de parentes em cargos e funções comissionadas.
A maior parte da sociedade aprovou a medida, regozijavam-se por assistir ao golpe de misericórdia sofrido pelo nepotismo no judiciário. Porém, logo começou a polêmica, os Desembargadores dos Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte e Goiás declararam-se contra a Resolução. A Associação Nacional dos Magistrados Estaduais, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN 3617, questionou no STF a inconstitucionalidade dos artigos 1º, 2º, 3º e 5º da Resolução nº 07/05. Os próprios juristas se colocaram em posições antagônicas diante da Resolução nº 7. Vários foram os motivos alegados, tanto por aqueles que a defendiam, quanto por aqueles que a consideravam um absurdo jurídico.
Em julgamento no plenário do Supremo Tribunal Federal a resolução saiu vitoriosa, por nove votos a um. A liminar tem efeito retroativo, vinculante e com eficácia para todos (erga omnes). A questão foi definida no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 12, ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros. A AMB desejava pacificar entendimentos díspares nos tribunais de todo o país. Alguns chegaram a conceder liminares favoráveis à permanência dos parentes em cargos de confiança, contrariando a determinação do Conselho, deliberações estas que perderam a eficácia em virtude da retroatividade da decisão do Pretório Excelso.
O relator, Ministro Carlos Ayres Britto, considerou que a edição da resolução não invadia a competência do Poder Legislativo, e a comparou com as medidas provisórias do Presidente da República. Para o Ministro o CNJ agiu de acordo com os artigo 103-b da CF, em defesa dos princípios albergados no art. 37. Os ministros Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Eros Grau, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Nelson Jobim e Sepúlveda Pertence . Divergindo do relator, o voto vencido foi do Ministro Marco Aurélio: “O CNJ, ao editar a Resolução, o fez totalmente à margem das atribuições previstas na Constituição Federal, e não vejo possibilidade de se deferir uma liminar que acaba potencializando a Resolução do próprio Conselho", declarou. O ministro Gilmar Mendes, por sua vez, ressaltou: "Se é da competência do Conselho zelar pelo cumprimento dos princípios da moralidade e da impessoalidade na fiscalização dos atos administrativos do Poder Judiciário não há dúvida, a meu ver, de que os atos que impliquem a prática do nepotismo ofendem diretamente os princípios da moralidade e da impessoalidade".
Os juristas que optam por afirmar a Constitucionalidade da Resolução nº 7, amparam-se no art. 103-B, §4º, inciso II, da Constituição de 1988. Conforme o texto constitucional, cabe ao CNJ "zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União". A nomeação de parentes para cargos em comissão fere o art. 37, pois como já foi afirmado, esses princípios valem não apenas para a Administração Pública, mas também para os outros poderes, que exercem a atividade administrativa como função atípica.
Roberto Wagner Lima Nogueira, professor do Departamento de Direito Público das Universidades Católica de Petrópolis (UCP), justifica a decisão do STF lembrando que o Estado-legislador detém duas caracterizadas vontades-normativas: uma primária, e outra, derivada. A primária busca a sua validade na própria Constituição Federal, sendo possível realizar inovações no ordenamento jurídico; a secundária, por seu turno, é fundamentada em norma infraconstitucional, não podendo fazer nenhuma inovação. Entre os atos normativos primários é possível citar: resoluções do Senado Federal (art. 52, VII, VIII e IX e art. 155, § 2º, V, alíneas a e b, da CF); medidas provisórias (art. 62 da CF); resolução do Conselho Nacional de Justiça (art. 103-B, II da Constituição Federal). Mas, esses atos só podem ter natureza de atos primários quando dispõem sobre competência e funcionamento dos órgãos jurisdicionais e administrativos submetidos às instituições supracitadas. Nessa ótica o princípio da legalidade é ampliado, para abarcar também esses atos, pois, por essa ótica, não só a lei pode introduzir normas gerais e abstratas no ordenamento jurídico.
Aqueles que são contra a Resolução nº 7 do CNJ, também possuem argumentos convincentes. A começar pelo fato de que a Constituição Federal de 1988, no art. 37, inciso II, que disciplinou a investidura nos cargos e empregos públicos, estabeleceu como cláusula o concurso público, em algumas exceções permitiu a livre nomeação e exoneração, mas nos cargos de confiança definidos em lei. O CNJ foi além do que diz o texto constitucional, o que invalida a medida. Ao contrário do que fez com Senado e da Presidência da República, em nenhum momento a Constituição declara a competência normativa do Conselho. O art. 103-B, § 4°, II, institui a competência do Conselho Nacional de Justiça para cuidar da aplicação do art. 37, controlar a legalidade dos atos administrativos, apesar disso, o poder normativo do CNJ não é mencionado na Carta Magna brasileira. Foi o Poder Legislativo que recebeu a competência, dada pela CF, para representar a população, exercendo o controle externo da Administração Pública, bem como o poder de editar normas, dentre elas as emendas constitucionais, que seria o melhor caminho para proibir o nepotismo na administração pública, com uma extensão para abarcar os demais poderes da República.
Outra saída seria o Conselho expedir uma recomendação aos Tribunais. Essa resolução seria lida como se fosse uma recomendação, pois está impossibilitado juridicamente de ser tratada como resolução propriamente dita, em virtude da incompetência do CNJ para legislar. E como seria uma recomendação, não seria impositiva, nem obrigaria o seu pronto acatamento pelos tribunais, somente orientaria, sendo uma espécie de diretriz. Vale aqui relembrar os ensinamentos do saudoso professor Hely Lopes Meirelles, que diz em sua obra: "As Resoluções, normativas ou individuais, são sempre atos inferiores ao regulamento e ao regimento, não podendo inová-los ou contrariá-los, mas unicamente complementá-los e explicá-los... (pág. 182, 2005). Como não há Lei proibindo o Nepotismo não poderá haver Resolução que o faça.
O Poder de Legislar, de acordo com os arts. 44, 48, 59, 60 e 61 a 68 da CF, é de competência privativa do Parlamento, podendo o Poder Executivo usar das Medidas Provisórias, art. 62, porém com algumas matérias vedadas, não podendo estas sofrer regulação por esse tipo de instrumento normativo.
Os contrários à atitude do Conselho Nacional de Justiça ainda alegam que a Resolução nº 7 invade diversas outras competências previstas na Constituição Federal de 1988. A Carta Magna nacional diz, em seu art. 96, I, alíneas a e b, ser da exclusiva competência dos Tribunais dispor “sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos” e “organizar suas secretarias e serviços auxiliares". O art. 99, caput, ainda assegura ao Poder Judiciário “autonomia administrativa e financeira”. O art. 125 da CF reza que "os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição". O parágrafo 1º do mesmo artigo diz que a "competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça". Não se pode esquecer, de igual modo, que o federalismo foi adotado como o sistema de governo brasileiro. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, são todos autônomos, nos termos do art. 18 da Constituição. Como não existe uma norma primária proibindo a prática do Nepotismo, e desconsiderando a opinião de Roberto Wagner Lima Nogueira sobre a natureza das resoluções do CNJ, a Resolução do Conselho não goza de eficácia.
Vale ressaltar, por outro lado, que a resolução nº 7 do CNJ assegura o direito aos parentes dos ocupantes de cargos na administração pública, de entrarem no serviço público via concurso público. Caso o art. 1º, § 1º (corrigido pela resolução 21/2006), não assegurasse esse direito estaria eivada de ilegalidade. Diz a resolução:
“ Ficam excepcionadas, nas hipóteses dos incisos I, II e III deste artigo, as nomeações ou designações de servidores ocupantes de cargo de provimento efetivo das carreiras judiciárias, admitidos por concurso público, observada a compatibilidade do grau de escolaridade do cargo de origem, ou a compatibilidade da atividade que lhe seja afeta e a complexidade inerente ao cargo em comissão a ser exercido, além da qualificação profissional do servidor, vedada, em qualquer caso, a nomeação ou designação para servir subordinado ao magistrado ou servidor determinante da incompatibilidade”.

Uma decisão semelhante foi tomada em Quebec, no Canadá. Na cidade de Brossard foi proibido a um cidadã, chamada Line Laurin, até o direito de participar de um concurso público, devido o fato de sua mãe trabalhar na Polícia do local. A cidade havia decidido combater o nepotismo na função pública municipal, adotando um regulamento em virtude do qual os familiares mais próximos dos conselheiros municipais e empregados a tempo inteiro da cidade não podem obter um emprego junto à cidade. Line afirmou ter sido discriminada, baseando a sua acusação nos arts. 10 e 16 da Carta de Direitos e Liberdades da Quebec (La Charte des Droits et Libertés du Québec). A administração da cidade não vê a questão do mesmo jeito. É uma regra razoável que permite prevenir nepotismo, como precisado ao artigo 20 da carta quebequense. O artigo 20 diz que uma exclusão fundada sobre as aptidões ou as qualificações requeridas de boa fé para um emprego, ou justificadas pela natureza política ou educativa de um organismo sem fins lucrativos, não é discriminatória.
Os sete juízes que compunham o Tribunal Supremo do Canadá foram unânimes: não há nenhum mal em estabelecer regras contra nepotismo, mas apenas se estas são razoáveis. E, no caso em questão, as regras não eram razoáveis. A cidade não poderia impedir Laurin de participar do concurso. Os arts. 10 e 16 apoiavam o pedido da moça, mas o art. 20, por sua vez, não justificava a afirmação da Administração de Brossard. O art. 10 prevê:
Toute personne a droit à la reconnaissance et à l'exercice, en pleine égalité, des droits et libertés de la personne, sans distinction, exclusion ou préférence fondée sur la race, la couleur, le sexe, la grossesse, l'orientation sexuelle, l'état civil, l'âge sauf dans la mesure prévue par La loi, la religion, les convictions politiques, la langue, l'origine ethnique ou nationale, la condition sociale, le handicap ou l'utilisation d'un moyen pour pallier ce handicap. (Qualquer pessoa tem direito ao reconhecimento e o exercício, em plena igualdade, dos direitos e liberdades da pessoa, sem distinção, exclusão ou preferência fundada sobre a raça, a cor, o sexo, a gravidez, a orientação sexual, o estado civil, a idade salvo na medida prevista pela lei, pela religião, as convicções políticas, pela língua, pela origem étnica ou nacional, pela condição social, pela deficiência ou pela utilização de um meio para paliar esta deficiência).
O artigo 16 proíbe a discriminação fundada sobre o estado civil (entende-se, no Canadá, que o estado civil engloba a filiação, a fraternidade, bem como o matrimônio, mas no Brasil, o estado civil é formado apenas pelo matrimônio ou sociedade conjugal) no recrutamento. A cidade é culpada de discriminação fundada sobre o estado civil excluindo Line Laurin de um emprego, por causa do emprego da sua mãe. O artigo 20 não apóia a posição da cidade. Este artigo estipula que uma regra de exclusão deve se ligar diretamente ao emprego e não pode prejudicar de maneira imprópria as pessoas tocadas. O fato de que a mãe de Line Laurin trabalha para o serviço de polícia não tem nenhum impacto nas competências da moça para o cargo.
Diante do exposto concluo pela inconstitucionalidade da Resolução nº 7 do Conselho Nacional de Justiça. Porém, esse fato não acaba com o princípio da impessoalidade. Vale frisar que a inexistência de um campo independente para a impessoalidade não impede o seu reconhecimento, o que foi feito pela Constituição de 1988. Cabe a doutrina dedicar mais atenção a esse princípio e aos administradores e ocupantes de cargos públicos zelarem por sua real efetividade. Fico com a frase da presidente do STF, Ellen Gracie, que definiu o nepotismo como “uma prática de natureza aristocrática cujas origens podem ser encontradas em nossas raízes coloniais”. O Brasil tem que evoluir nesse sentido, o combate ao nepotismo não é uma escolha, é uma obrigação. Não pode um país que se diz democrático conviver com funcionários adeptos de um absolutismo tardio. O poder público deve ser efetivamente público. Nesse contexto a impessoalidade é, de todos os princípios, talvez o mais desejado.
O Brasil já ignorou por muito tempo a necessidade de controlar o nepotismo por uma lei efetivamente válida. Um país que quer se colocar entre os mais importantes do mundo ainda peca em questões que países esquecidos da áfrica e América Latina, já estão resolvendo, pelo menos com a edição de leis, que é o primeiro passo. Aos parentes fica a possibilidade de adentrarem no serviço público via concurso, direito esse que se fosse contestado violaria direitos fundamentais reconhecidos não apenas em solo brasileiro, mas também em outros países, como o Canadá, e em especial Quebec, província que herdou, em volume maior (por questões de colonização), mas, igualmente ao Brasil, traços do direito administrativo francês.
A Resolução do CNJ é inconstitucional porque desrespeita as competências estabelecidas pela Carta Magna brasileira. Porque o Conselho não tem o poder de inovar no ordenamento jurídico. Além disso, o próprio instrumento usado não é o adequado, a lição do inesquecível Hely Lopes nos faz recordar que as resoluções não podem, de igual forma, trazer inovações ao Direito. A moralidade deve sempre guiar o poder público, mas não pode o Pretório Excelso ignorar a Constituição, a qual deve defender, para combater o nepotismo. Antônio Fernando Dantas Montalvão entende que “princípios, competências e prerrogativas não se transigem”. O combate ao nepotismo, que dará a nação a tão sonhada eficiência do serviço público, não passa, essencialmente pelo atropelamento da Constituição. Uma emenda Constitucional poderia solucionar o problema, e ela tramita a muito tempo no Congresso. De autoria da deputada Zulaiê Cobra a emenda propõe um acréscimo do parágrafo 11 ao art. 37 da CF que proibiria, constitucionalmente o nepotismo. Cabe ao eleitor, de posse da sua arma contra as ilegalidades (leia-se, o título eleitoral), votar em pessoas compromissadas com essa causa. Sá assim será possível vislumbrar uma nova realidade para a administração pública e demais poderes da República.
A decisão do STF é perigosa porque abre espaço para o que Cláudio Lembo denomina ditadura dos tribunais. Na Corte Suprema, os juízes são apenas 11, o Congresso Nacional, por seu turno tem 594 membros, e os parlamentares foram inegavelmente eleitos, mesmo que de maneira discutível, pelo eleitorado nacional. Já os juízes do STF são empossados de acordo com um critério totalmente impuro, que é capricho pessoal do presidente da República, o inquilino temporário do Palácio do Planalto. O chefe do Executivo para acentuar mais notadamente a arbitrariedade já evidente, tem, em suas mãos, a possibilidade de ter dois mandatos consecutivos e, nesse período, influenciar na composição do tribunal de acordo com as suas vontades. Num país marcado por períodos de exceção, localizado numa parte do continente ainda não muito acostumada com a democracia, onde a divisão de Poderes, defendida desde longínquos tempos por Montesquieu (em sua obra "De L’Espirit des Lois"), já foi ignorada o bastante, a possibilidade de se permitir a edição de leis pelo próprio poder que irá aplicá-la é, nas palavras de Lembo: “apavorante, já que a pior ditadura é a ditadura do Judiciário. A ditadura da toga é a mais perigosa das ditaduras, porque é difícil de ser combatida”.
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Obs doutrinárias do Autor: "O nome "artigo, o recomeço" se dá pelo fato de que ele foi apagado uma vez quando eu já estava concluindo. Incidentes que já me faziam prever o final da história."