sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Controle judicial dos atos administrativos: uma agressão à divisão de poderes?

Diane Jessica Morais Amorim
Estudante de Direito da UNEB
I - Introdução:

Embora consagrada a doutrina da separação de poderes de Montesquieu, sabemos que cada poder exerce suas funções típicas e atípicas. Dessa forma, nas palavras do ilustre Celso Antonio Bandeira de Mello, o poder judiciário interfere no poder legislativo pelo controle da constitucionalidade das leis, bem como interfere no poder executivo pelo controle jurisdicional da administração pública.
Não há dúvidas quanto à sujeição dos atos administrativos ao crivo do Poder Judiciário. A doutrina e a jurisprudência são praticamente unânimes no sentido de que o administrado pode, ante a uma decisão administrativa definitiva que contraria os seus interesses, buscar o Judiciário com o escopo de modificá-la. O artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal dá respaldo a essa sujeição.
Porém há aqueles que questionam o controle dos atos administrativos discricionários, pois defendem que pelo fato de ser a discricionariedade competência tipicamente administrativa, o controle jurisdicional implicaria ofensa ao princípio da Separação dos Poderes. Surgem, então, alguns questionamentos: Até que ponto o Judiciário pode interferir? Não seria essa interferência uma invasão de competências? Isso não fere a tripartição de poderes?
Analisando a doutrina e a jurisprudência, buscaremos a solução que melhor se aplica à problemática em questão.

II – A tripartição de poderes:

Como brilhantemente constatado por Montesquieu, tudo estaria perdido se o mesmo homem exercesse os três poderes. Ele assenta a sua teoria na presença de poderes distintos e especializados, confiados a diferentes órgãos que se contrabalancem no seio do Estado como forma de evitar abusos decorrentes da concentração do poder. Nesta divisão temos o Poder Executivo, o Poder Legislativo, o Poder Judiciário, inexistindo qualquer meio de subordinação entre eles. Como não existe a separação absoluta entre os poderes, pode-se dizer que todos eles legislam, administram e julgam. Mas cada um deles possui o que se chama função típica e atípica; aquela exercida com preponderância é a típica e, a função exercida secundariamente é a atípica.
Conforme redação da Constituição Federal de 1988, os poderes da República são independentes e harmônicos entre si. Há interações entre os poderes que objetivam o estabelecimento do mecanismo de freios e contrapesos, que busca o equilíbrio necessário para a realização do bem coletivo. A ministra Eliana Calmon defendeu em um voto que as funções estatais, Executivo, Legislativo e Judiciário não podem ser concebidas de forma estanque. São independentes, sim, mas, até o limite em que a Constituição Federal impõe o controle de uma sobre as outras, de modo que o poder estatal, que, de fato, é uno, funcione em permanente autocontrole, fiscalização e equilíbrio. Baseados no texto constitucional, diversos doutrinadores defendem que não há uma divisão de poderes; o que ocorre é uma divisão de funções em um só poder. Derruba-se assim a falsa idéia de que o Poder do Estado seria passível de divisão; a soberania estatal é una e indivisível. Há, na verdade, possibilidade desse poder manifestar-se por órgãos e formas diferenciadas.


III – Atos administrativos:

Celso Antônio Bandeira de Mello conceitua ato administrativo como declaração do Estado, ou de quem lhe faça as vezes, no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional. Os atos administrativos possuem, em regra, presunção de legitimidade, imperatividade e auto-executoriedade. Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a produção de efeito jurídico é essencial para o conceito de ato administrativo. Esta doutrinadora define-o como o uma declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, sob regime jurídico de direito público, sujeita à lei e ao controle pelo Poder Judiciário.
A doutrina subdivide os atos administrativos em:
* Vinculados, que são aqueles identificados pela ausência de liberdade do administrador que no momento da realização do ato deverá pautar sua conduta em conformidade com a forma e conteúdo consignado na lei, abstendo-se de juízos de conveniência e oportunidade;
* Discricionários, que são aqueles onde se sobressai certa margem de discricionariedade do executor, franqueando-se a possibilidade de valorar subjetivamente a conveniência e oportunidade da realização do ato. Portanto, nessa espécie, é a própria lei que confere ao agente público uma margem para escolha da solução que melhor atenda os interesses públicos em jogo.
A discricionariedade advém da própria norma jurídica, que indica a existência ou não dessa margem de liberdade no atuar da Administração. O poder-dever discricionário é outorgado pelo Legislador quando, dentre outras situações, é impossível se prever antecipadamente a melhor solução para cada situação concreta. Ressalte-se que a compostura do caso concreto exclui algumas das soluções admitidas pela regra em abstrato (diminuindo o âmbito de discrição), e pode, até mesmo, tornar evidente que uma única medida seria apta a atender o fim legal (eliminando a discricionariedade).
Nas palavras de Leandro Lyra, a discricionariedade é representada pelo chamado mérito do ato administrativo - que é a possibilidade de opção pelo Agente dentro dos ditames legais.

IV – Controle judicial:

O chamado controle jurisdicional da Administração Pública ganha, entre nós, sede constitucional, através do artigo 5o, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988, que assim dispõe: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O Brasil adota o sistema de jurisdição judicial única onde a Justiça ordinária tem a faculdade de julgar todo ato de administração praticado por agente de qualquer dos órgãos ou Poderes do Estado."
O controle jurisdicional é a análise da aplicação do Direito ao caso concreto, realizada exclusivamente pelo Judiciário, quando provocado, para que decida, em caráter definitivo, a respeito de conflitos, sejam quais forem as partes. Esse controle pode ser exercido por meio de Habeas corpus, Habeas data, Mandado de injunção, Mandado de segurança individual ou coletivo, Ação popular e Ação civil pública. Para Celso Antônio, ele é meio fundamental pelo qual se pode garantir o atendimento da lei, a afirmação do direito.
É de grande valia a opinião do saudoso Hely Lopes Meireles ao afirmar que "nem mesmo os atos discricionários refogem do controle judicial, porque, quanto à competência, constituem matéria de legalidade, tão sujeita ao confronto da Justiça como qualquer outro elemento do ato vinculado. (...) Daí porque o Judiciário terá que examinar o ato argüido de discricionário, primeiro, para verificar se realmente o é; segundo, para apurar se a discrição não desbordou para o arbítrio".
No âmbito do direito administrativo, a relevância acerca da distinção entre os atos vinculado e discricionário reside na questão inerente às matérias que poderão ser levadas ao Judiciário, que poderá julgar acerca da competência do agente, da forma, da finalidade e dos motivos, mas, para grande parte dos doutrinadores, não poderá analisar se o ato deveria ou não ter sido praticado, pois isto é a discricionariedade, o mérito do ato administrativo. Como dito, grande parte da doutrina concorda quando a questão é a impossibilidade do judiciário julgar o já citado mérito administrativo. Celso Antonio Bandeira de Mello afirma que: “Mérito do ato é o campo de liberdade suposto na lei e que efetivamente venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, decida-se entre duas ou mais soluções admissíveis perante a situação vertente, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, ante a impossibilidade de ser objetivamente identificada qual delas seria a única adequada”. Sendo assim, o Poder Judiciário não usurpará da Administração Pública a análise sobre a conveniência e oportunidade da medida. Mas essa conveniência e oportunidade devem se sujeitar à legalidade (em sentido amplo), competindo ao Judiciário, detentor do monopólio da jurisdição, verificar in concreto essa sujeição.
Ao judiciário cabe apreciar o motivo, ou seja, os pressupostos de fato e de direito que serviram de fundamento ao ato administrativo, e não o seu mérito, pois este diz respeito à oportunidade e conveniência diante do interesse público a atingir. Concordamos com Maria Sylvia quando esta defende que os motivos podem ser analisados pelo Judiciário, pois não há invasão do mérito quando ele os aprecia, ou seja, aprecia os fatos que precedem a elaboração do ato; a ausência ou falsidade do motivo caracterizam ilegalidade, suscetível de invalidação pelo Poder Judiciário.

Destarte, tem-se que o controle jurisdicional deve restringir-se ao exame dos motivos e da finalidade ato administrativo, sempre com os olhos voltados para a legalidade e moralidade do ato praticado e sem examinar o mérito, pois tal exame configuraria uma invasão na esfera de atribuições do administrador.

V – Jurisprudência:

Ao analisarmos alguns votos de ministros do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, podemos concluir que hodiernamente o controle judicial dos atos administrativos não mais é considerado uma invasão de competência. Tais tribunais defendem inclusive que o Poder Judiciário adentre no mérito Administrativo.
O ministro Marco Aurélio defende que mesmo nos atos discricionários há margem para que a administração atue com excessos ou desvios ao decidir, competindo ao Judiciário a interpretação cabível.
De notável relevância é a afirmação do ministro Eros Grau: “a conveniência e oportunidade da Administração não podem ser substituídas pela conveniência e oportunidade do juiz. Mas é certo que o controle jurisdicional pode e deve incidir sobre os elementos do ato, à luz dos princípios que regem a atuação da Administração”.
Há que se fazer ressalvas a esta interferência. Para o ministro Vicente Leal, foge ao limite do controle jurisdicional o juízo de valoração sobre a oportunidade e conveniência do ato administrativo, porque ao Judiciário cabe unicamente analisar a legalidade do ato, sendo-lhe vedado substituir o Administrador Público. Já Ministro Eros Grau acredita que a doutrina moderna tem convergido no entendimento de que é necessária e salutar a ampliação da área de atuação do Judiciário, defendendo que o controle jurisdicional aprecie inclusive o mérito dos atos da administração. Ele defende que o Poder Judiciário vai à análise do mérito do ato administrativo, inclusive fazendo atuar as pautas da proporcionalidade e da razoabilidade, que não são princípios, mas sim critérios de aplicação do direito, ponderados no momento das normas de decisão. O Judiciário não apenas examina a proporção que marca a relação entre meios e fins do ato, mas também aquela que se manifesta na relação entre o ato e seus motivos, tal e qual declarados na motivação.
A ministra Eliana Calmon possui pensamento semelhante ao do ministro Grau e entende que “na atualidade, a Administração Pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo. (…) O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade”.

VI – Conclusão:

Durante muito tempo se afirmou, pelo fato de ser a discricionariedade competência tipicamente administrativa, que o controle jurisdicional implicaria ofensa ao princípio da Separação dos Poderes. Atualmente a própria Carta Constitucional brasileira dá ao Poder Judiciário a prerrogativa de apreciar os atos administrativos. Na doutrina e na jurisprudência já é assente a possibilidade de tal controle, havendo discordância apenas quanto ao limite desta “invasão”. Nos últimos anos, porém, tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça, vêm admitindo que o controle jurisdicional dos atos emanados da Administração Pública não se restringe à verificação dos pressupostos objetivos de legalidade e legitimidade: passou-se a reconhecer a possibilidade de projeção das lentes judiciais sobre o âmago dos atos administrativos. Estamos, porém, com a maioria da doutrina e acreditamos que cabe ao judiciário a apreciação dos motivos, a observância da legalidade e de outros princípios, porém sem invadir o mérito do ato, pois este é uma prerrogativa da administração, um espaço reservado ao administrador para decidir baseado na oportunidade e conveniência, pois compete exclusivamente à Administração Pública a formulação de juízos de conveniência e oportunidade dentro da esfera liberdade a ela conferida pela lei. A conveniência e oportunidade da Administração não podem ser substituídas pela conveniência e oportunidade do juiz. Acreditamos então que ao Poder Judiciário não é dado adentrar no mérito do ato administrativo - substituindo a conveniência e oportunidade do administrador pela do juiz -, em face do princípio da separação dos poderes previsto no artigo 2º da Constituição Federal.

VII – Bibliografia:

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 821.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 640
BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. São Paulo: Renovar, 2005. t. 3, p. 367
ASSUNÇÃO, Matheus Carneiro. O controle judicial dos atos administrativos discricionários à luz da jurisprudência do STF e do STJ . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1078, 14 jun. 2006. Disponível em: . Acesso em:
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13 nov. 2007
Superior Tribunal de Justiça, 2ª Turma, REsp 429570/GO; Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 22.03.2004 p. 277 RSTJ vol. 187 p. 219.
LYRA, Leandro J. O controle da discricionariedade do ato administrativo pelo Poder Judiciário. Jus Vigilantibus, Vitória, 7 ago. 2007. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2007.
STF, Segunda Turma, RE 131661 / ES, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Publicação: DJ 17-11-1995 PP-39209 EMENT VOL-01809-06 PP-01393
STJ, Sexta Turma, RMS 14967/SP Rel. Min. Vicente Leal, DJ 22.04.2003 p.272
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, 1999